Quem desce a rua dos Condes, dos Restauradores em direcção às Portas de Santo Antão, descobre do seu lado direito, emoldurado por dois "restaurantes e cervejarias", o tradicional "Restaurador" à direita, o modernaço "Derby" á esquerda, uma velha sala de cinema, com a porta enquadrada por vitrines que anunciam filmes com títulos bem "sugestivos". Esta semana pode lá estar "Desejos Escaldantes" ou "A Casa dos Prazeres", mas "Viva Vanessa, Toda Nua", "A Taberna dos Mil Pecados", "O Bem Bom da Insaciável" ou "Orgias Fora de Horas" já por lá passaram certamente, bem como muitos outros títulos menos suaves na sua designação. Estamos nos domínios do cinema "porno", 1º escalão, "hard cord". Com sessões continuas, a partir das 13,30 de todos os dias.
Olhando para esta sala nalguns aspectos algo degradada, apesar de recentemente restaurada, não suspeitará decerto que este já foi um dos grandes cinemas de Lisboa do início do século XX. Na imprensa da época podia ler-se, uma local referindo a abertura de uma nova sala de espectáculos em Lisboa, "composta de salões para concertos, salões para exibições animatográficas, gabinete de leitura, restaurante, etc.", ficando "esta casa de espectáculos como a primeira da capital." Foi assim na sua inauguração oficial a 22 de Abril de 1911.
O Olympia foi mandado construir por Leopoldo O' Donnell, filho de irlandeses que se fixaram em Portugal. Nascera em Lisboa, a 4 de Abril de 1870, fora chefe de repartição da Real Companhia dos Caminhos-de-Ferro Portugueses, era um homem culto, que mantinha uma forte amizade com Sabino Correia, empresário do "Chiado Terrasse", uma das grandes salas de Lisboa, situada na rua António Maria Cardoso, e que hoje é uma delegação de um banco.
Sabino Correia, "que no decorrer de longos anos ficaria a ser um dos mais próximos, assíduos e seguros colaboradores de Leopoldo O' Donnell", no dizer de M. Felix Ribeiro, em "Os Mais Antigos Cinemas de Lisboa", entusiasmou o amigo a dotar a capital com um novo cinema pois já, nessa altura, esse "era um negócio que se antolhava florescente".
Assim, os dois amigos, associados a Júlio Petra Viana, e também durante algum tempo a Henrique O' Donnell e Jaime da Cunha Rosa, formaram uma empresa para a construção e a exploração do novo Salão. Mais tarde (por volta de 1912), Sabino Correia, "este homem modesto, simpático no trato, excelente administrador, conhecedor como poucos do negócio da exibição, até pela sua prática de muitos e muitos anos", deixou a direcção do Chiado Terrasse, e passou a exercer as funções de director-gerente do Olympia, "cargo que manteria até quase ao desaparecimento de Leopoldo O'Donnell, de quem foi como que o seu "alter-ego" em todos os negócios de exploração cinematográfica a que aquele esteve ligado ao longo de tão extensa e importante actividade."
Voltando a citar M. Felix Ribeiro: "A importância que o Olympia viria a assumir no quadro do espectáculo cinematográfico da Lisboa de então é das mais significativas, facto digno de destaque, por bem merecido. Sobretudo essa relevância torna-se francamente notória a partir de 1916 pelo dinamismo imprimido à sua exploração através das mais variadas e interessantes iniciativas em que o aspecto cultural, para além do critério meramente cinematográfico, embora por vezes, dele consequência directa, se apresentava, como dissemos, de significado muito especial, o que não se observava nas salas então suas concorrentes."
Referem-se várias iniciativas, então inéditas em Portugal, e que demonstram um profundo conhecimento de algumas das regras básicas da publicidade e do "marketing" ("avant la lettre"). Por exemplo, a criação de "matinées" infantis, "um verdadeiro oásis para os espectadores mais pequenos com os quais, antes, ninguém contara e com "programas apropriados tanto de écran como musical", como acentuava a propósito um prospecto." Ou então os sorteios de brindes entre o seu público. Com a compra do bilhete, o espectador recebia uma senha que lhe dava direito a participar num sorteio mensal, em que os brindes mais diversos eram sorteados. Em Junho de 1917, um burro era o "brinde" a sortear, um burrico de carne e osso que se "passeou por Lisboa, reclamando o acontecimento!..."
Mas também surgiram iniciativas de cunho altamente cultural. A partir de Dezembro de 1917, por exemplo, o Olympia passou a efectuar espectáculos de tarde, que intitulava "Matinées de Arte", em que alguém do mundo do teatro ou do cinema português comentava um programa cinematográfico especialmente seleccionado para o efeito. Por aí passaram nomes grandes, como Angela Pinto, Augusto de Melo, Etelvina Serra, Estevão Amarante, Joaquim Costa, Erico Braga, que "ali estiveram recitando, conversando com o público sobre teatro, interpretando diálogos como foi, por exemplo, o caso daquele que, propositadamente, Ruy Chianca - escritor e dramaturgo bem conhecido, cuja obra recente, a peça "Aljubarrota" havia alcançado grande êxito - escrevera com o título "O Leque".
M. Felix Ribeiro faz ainda referência a uma conferência de António Ferro, realizada a 1 de Junho de 1917, na respectiva "Matinée" de Arte", "As Grandes Trágicas do Silêncio", "que daria brado na calma Lisboa literária de então". A conferência começava assim: "Por iniciativa do Ex.mo Sr. O' Donnell, ilustre empresário deste animatógrafo, realiza-se hoje aqui uma "matinée" que tem principalmente a valorizá-la o seu completo ineditismo entre nós. Trata-se de consagrar pelo écran, pela palavra e pela música as três grandes trágicas do animatógrafo, Francesca Bertini, Pina Menichelli e Lyda Borelli. Talvez pelo grande culto, pelo quase fanatismo que tenho há muito tempo por essas grandes artistas, eu fui amavelmente encarregado de as apresentar, numa curta conferência, ao numeroso público que me escuta."
Durante a época do mudo, todas as grandes salas de estreia da capital dispunham de um conjunto musical que acompanhava o filme, através de uma partitura original, ou improvisada na altura, mas que preenchia igualmente os intervalos com música ao gosto da assistência. Os programas que anunciavam o filme não descuravam o repertório musical que era também indicado atempadamente. Em 1912, Francisco Benetó, um músico considerado, dirigia o sexteto do cinema Olympia, o qual passaria, sucessivamente a ter na sua direcção nomes como os de Francisco Remartinez, Nicolino Milano, etc.
A programação do Olympia nos anos de 1917 a 1918 achava-se estruturada da seguinte forma: às segundas e quartas-feiras, a partir das "matinées", estreia de novos programas; às quintas-feiras, sábados e domingos, exibição dos filmes de maior êxito. As "Matinées" de Arte" tinham lugar às terças e sextas-feiras.
Tome-se o ano de 1918 como referência, e veja-se a programação do Olympia (com base nas informações fornecidas pelo volume "Estreias em Portugal (1918-1957)", de Luís de Pina): "O Preságio", de Augusto Genina (15.1), "Judex", de Louis Feuillade (24.1); "Último Amor", de Leonce Perret (8.2); "A Mãe", de Amleto Palermi (15.2); "Andrea", de Gustavo Serena (18.2); "A Chama do Ódio" (23.2); "Os que Morreram pela Pátria", de Gianni Terribili (25.2); "D. Juan" (28.2); "Romanticismo", de Mario Caserini (4.3); "A Princesa", de Camillo De Riso (11.3); "O Homem Papagaio" (18.3); "O Médico e o Filha", de Hjalmar Davidsen (19.3); "A Ferradura" (23.3); "Cristo", de Enrico Guazzoni (25.3); "O Festim de Baltazar" (27.3); "A Chama Eterna", de Maurice Tourneur (1.4); "8 Milhões de Doláres" (9.4); "Enterrada Viva" (2.5); "Maciste, Soldado Alpino ", de Luigi Maggi e Luigi Romano Borguetto, com supervisão de Carmine Pastrone (6.5); "O Clube nº 13" (13.5); "A Morte do Duque de Ofena", de Emilio Graziani, Walter e Alfredo Robert (21.5); "A Rainha do Dólar" (30.5); "O Processo Clemenceau", de Edoardo Bencivenga (3.6); "O Diamante da Família" (11.6); "A Amiguinha" (16.6); "Oh, Aquele Beijo", de Louis Mercanton (29.7); "Pérola Branca", de Edwin S. Poter (?); "O Enigma da Escada Circular" (5.8); "Na Senda da Ambição" (20.8); "Depois do Baile" (27.8); "O Último Cavaleiro", de Riccardo Tolentino (15.10); "A Vertigem" (21.10); "Brincar com o Fogo", de Maurice Tourneur (4.11); "Náná", de Camillo De Riso (18.11).
Muitas vezes, a programação do Olympia era comum com a de outras salas. No ano de 1918, estreou muitas vezes em simultâneo com o Chiado Terrasse mas, posteriormente, viria a fazê-lo muitas mais vezes com o Politeama, havendo até, nesses momentos, passagem directa entre as duas salas.
Como vemos já pela lista de estreias de 1918, o predomínio era dado nessa altura a produções europeias, italianas, francesas e dinamarquesas, com uma ou outra incursão pelo cinema norte-americano. Na época, os "serials" (filmes em episódios) eram frequentes, e o Olympia estreava por exemplo uma das obras-primas deste género, "Judex", de Louis Feuillade. Eram películas de aventuras, em várias "partes" e muitos "episódios", divididos em "jornadas". Numa semana estreava-se a primeira jornada, da semana seguinte a segunda jornada, e da primeira para a segunda jornada o herói (ou a heroina, já que um dos mais famosos "serials" era protagonizado por uma mulher, Pauline: "The Perils of Pauline") ficava sempre pendente de uma situação perigossíssima que se iria resolver a contento de todos no início da jornada seguinte.
Em 19 de Abril de 1915, por exemplo, estreava-se "Catalina" (The Adventures of Kathlyn), com Kathlyn Williams, treze episódios estreados entre este dia e 20 de Maio, com os seguintes títulos: "Rainha à Força", "As Duas Provas", "O Templo do Leão", "A Escrava Real", "O Coronel Algemada", "O Elefante Sagrado", "Em Poder dos Bandidos", "Nas Garras dos Tigres", "Entre Tigres e Leopardos", "A Amazona Invencível", "O Pergaminho Falsificado", "A Vontade de um Rei" e "A Última Aventura". Por curiosidade, acrescente-se que este foi o primeiro "serial" cujos episódios semanais foram acompanhados pela publicação diária de um folhetim no "Chicago Tribune". Servindo-nos da mesma fonte informativa ("Animatógrafos de Lisboa e Porto", de A.J.Ferreira), diremos que "A Chave Mestra", outro seriado, este com quinze episódios, estreados entre 14 de Fevereiro de 1916 e 2 de Maio, uma produção da Universal com Ella Hall e Robert Leonard, foi o primeiro a ser acompanhado por um folhetim diário num jornal português, precisamente em "A Capital".
O Olympia sempre foi um cinema relativamente "popular" na sua frequência, por oposição a outros (São Luiz, Tivoli, Condes, Politeama), mas o mesmo não quer dizer que pela sua tela não tenham passado obras de indiscutível qualidade, de grandes nomes da cinematografia mundial. Acontece que a predominância eram obras de aventuras, dramas históricos ou comédias, o que arrastava como consequência um público mais popular, que se veio a manter, e a acentuar, com o evoluir das décadas.
Nos anos 50 e 60, o Olympia era um cinema essencialmente "popular", com "peplums" italianos, "westerns" americanos, filmes de terror e fantásticos, de variada origem, policiais e "thrillers" para todos os gostos. Acontece que muito do cinema norte-americano de série B por lá se viu, um Orson Welles ou um Luis Buñuel podia ser lá projectado, ao lado de nomes como Alan Dwan, Samuel Fuller, Raoul Walsh, Mario Bava, William Castle, Roger Corman e tantos outros.
O programa de cada sessão era sempre constituído por dois filmes (a chamada "sessão dupla"), e havia o hábito das sessões contínuas. O espectador podia entrar e sair quando quisesse, não havendo por isso lugares marcados. Não havia em teoria, porque na prática o público se encarregava de os "marcar" à sua maneira, quando saía para os intervalos, deixando um lenço amarrado às costas da sua cadeira, para assim ter a certeza de vir a encontrar o seu lugar disponível, quando do regresso do cigarrinho da praxe e do café bebido ao balcão de um bar que existia no "hall" do rés-do-chão.
Em 1978, M. Felix Ribeiro afirmava que uma das características da sala era ser avessa a transformações: "Parece-nos também de referir que, enquanto outros cinemas - que vinham mais ou menos da mesma época do Olympia -, e foi o caso do Ideal, do Chiado Terrasse, do Salão da Trindade, do Central, fizeram por mais de uma vez, até, modificações nas suas salas, o Olympia, porém, à parte ligeiras obras de beneficiação a par de algumas outras de carácter mais cenográfico que propriamente arquitectónico, executadas sob a orientação do cenógrafo Eduardo Reis, Pai, jamais alterou a estrutura arquitectónica da sala (...)."
Quatro andares compõem o prédio, o rés-do-chão e o primeiro andar ocupados pelo cinema (respectivamente plateia e balcão, com a cabina de projecção a poder ser vista do exterior do edifício). Pertencente hoje em dia ao mesmo proprietário do Teatro Politeama, permite estabelecer comeste uma ligação interior, muitas vezes utilizada, como já referimos. Arquitectura sóbria, própria de finais do século XIX, inícios do XX, o edifício foi, todavia, muito alterado no seu interior, depois de uma bomba, dirigida à Casa de Moçambique (que se encontrava instalada no andar de cima), ter feito ir pelos ares quer a Casa de Moçambique (que se mudou definitivamente para outro local), quer o próprio cinema. O Olympia viria a ser radicalmente transformado por dentro, perdendo muitas das suas mais saborosas peculiaridades, nesse atentado do Verão quente de 75.
Depois de 1974, com a chegada dos filmes "porno" a Portugal, depois de abolida a censura, o Olympia especializou-se neste área, onde se mantém até hoje.
A Empresa do Olympia, Lda, em 2001 constituída por seis sócios, entre os quais dois sócios gerentes, José Reis e Emília Reis, mantém o aluguer do imóvel, pertença dos herdeiros de Luís António Pereira. José Reis, que se encontra no Olympia há mais de trinta anos, começou por ser um dos empregados desta sala, passando a sócio em 1984. Explica a transformação da programação do cinema com as dificuldades encontradas em manter uma selecção de filmes populares, dentro do género de aventuras, como acontecia antes de 1974. Depois de alguns anos de uma certa prosperidade (mais de quinze ou vinte anos rendeu bem o filme pornográfico), também aqui a crise se instalou: "Hoje, com o vídeo e os canais de televisão a fazerem forte concorrência, os cinemas que se dedicam a este tipo de filmes estão definitivamente em crise, aguardando a morte anunciada. Perdemos mais de oitenta por cento do nosso público habitual. O que a bilheteira rende, dá apenas para pagar as despesas, e pouco mais."
Compreende-se que nem todas as salas de espectáculo possam ser conservadas, e que algumas mesmo justifiquem a sua substituição por outras, construídas de acordo com novos projectos arquitectónicos, novas tecnologias, novas necessidades do público. Mas o desaparecimento de uma casa como o Olympia será sempre o empobrecer da memória de uma cidade e da cultura cinematográfica (e não só) de um País.
Lauro António
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