quinta-feira, fevereiro 02, 2017


 
 
 
 
Como todas as «memórias perdidas» de que aqui, de vez em vez, se tem falado estas Memórias de Adrião não valem pela sua qualidade literária; não é esse, de resto, o propósito do livro nem desta rubrica do Malomil. Crónicas de um Aventureiro do Século XX, de Adrião Homem de Sá, foi publicado em Maio de 2006 pela Miosótis – Edição e Distribuição, Lda., Avª Almirante Reis, nº 131 – 6º Dto. No prefácio, o actor Nuno Homem de Sá – filho do autor Adrião Homem de Sá – diz que o livro do pai fala das «aventuras dos jovens de uma certa classe média». 
         Falar em «classe média», salvo o devido respeito, parece um déclassement algo forçado, sobretudo se tivermos presente que, logo nas primeiras páginas, Adrião diz que sua mãe era «descendente de família nobre e abastada da Beira Litoral e neta do Visconde de Valdoeiro» e que seu pai era «descendente de família nobre e abastada, uma das mais antigas de Portugal». Mesmo se descontarmos alguma jactância nobiliárquica, não há dúvida de que o jovem Adrião estava longe de ser um produto típico da classe média urbana; em termos de classe, de rendimentos do agregado familiar, talvez fosse da classe média (seja lá isso o que for); no que se refere ao status, esse intangível conceito weberiano, enquadrava-se muito mais num grupo de meninos-família de posses flutuantes, quase sempre minguantes, mas ainda assim cientes do seu estatuto de rapazes estroinas e bem-nascidos. 
         Adrião bem nasceu em Lisboa, em 1931. E teve uma infância feliz nas Avenidas Novas da capital, entrecortada por férias estivais em São Martinho do Porto e na Figueira da Foz. Estudou no Colégio Vasco da Gama, mais tarde no Colégio Português de Educação Feminina, enquanto o seu irmão frequentava o Colégio D. Filipa de Vilhena. Caiu de cabeça no Liceu Camões, altura da vida em que fumou o seu primeiro cigarro e fez a sua primeira visita a um bordel. Dos estudos pouco conta, pois pouco contaram para o seu percurso vital. Com o entrar dos anos, Adrião foi ganhando corpo e porte, ambos atléticos. Ginasticado em Carcavelos, rapaz de mar, deu-se a mil e uma actividades físicas, seguindo o modelo de sportsman polivalente e amador, típico da sua época e do seu meio social. Seria forcado, e cábula inveterado. Levou um 6 a Matemática, no Liceu Camões – que, por causa disso, teve de abandonar, crê-se que sem mágoa de espécie alguma. Matriculou-se então no Colégio Académico, aos Anjos, enquanto descobria as artes do salto e da prancha numas férias no Hotel do Luso, recém-inaugurado. Às tantas, de tantas, Adrião virou boémio. O livro percorre, em cadência alucinada, uma sucessão de proezas amorosas e sexuais, contadas com basta gabarolice por este antigo aluno do Instituto Nacional de Educação Física. Também muito clássica, a referência às mulheres estrangeiras e o estereótipo, verdadeiro ou mitológico, de que seriam mais desinibidas – ou «fáceis», no jargão de Adrião – do que as suas congéneres lusitanas que, de capelina, iluminavam a Bénard e a Marques, ao Chiado, ou a Versailles, nas Avenidas Novas. Entre patuscadas e estroinices mil, foi atropelado pela paixão dos carros, não sendo ao acaso que muitos dos amigos de borga de Adrião tenham acabado, como ele, na distinta profissão de vendedores de automóveis. Para isso tinham figura e lábia, impressionando os potenciais compradores e compradoras em standsde novos/usados onde pontificavam estes meninos-bem, todos do Sporting, claro, que iam envelhecendo galãs, com três ou quatro casamentos às costas – mas sem nunca perderem a pose, de artistas. 
         Não há nada de especialmente relevante nesta vida, que se viveu apenas. Farras, patuscadas, loucuras mais ou menos inocentes, um mergulho de cabeça na Lisboa boémia, dos cabarets e dos ardinas, dos filmes de Fu Man Chu vistos em cinemas ruidosos, dos tascos abertos até de madrugada. O Parque Mayer, de actrizes e coristas, a Feira Popular mais os seus tirinhos, as sanduíches da Tendinha do Rossio ou do Zé do Quiosque, as entradas à má fila nas recepções das embaixadas, uma ou outra noite terminada na esquadra. O bife do Monte Carlo, noitadas no Maxim’s e no Ritz club, o trivial da boémia. E, suprema pândega, as idas ao estrangeiro, à Espanha vizinha, noitadas no famoso cabaré Pasapoga, Gran Vía, Madrid. «Sempre na pista do feminino», assim se intitula um dos capítulos, que assim resume a juventude de Adrião Homem de Sá, Naturista militante, praticante de caça submarina, fez tropa em Cavalaria, Torres Novas, estudou para piloto em São Jacinto, bon vivant, jogador no Casino, lavador de janelas e mâitre de restaurante em Londres. Esteve na Exposição de Bruxelas, em 1958, correu a Europa de uma ponta à outra, acabando por assentar em Lisboa, empregando-se na firma Guérin, onde começou a lavar carros e terminou em postos de maior responsabilidade, como gerente da oficina da VW, por exemplo. Casou-se, separou-se, recasou-se, teve filhos, diz-se feliz. No meio da borga, uma existência normal, em larga medida previsível, mesmo quando Adrião se gaba, sem excesso de pormenores escabrosos, das hospedeiras da TWA que seduziu ou das mil e uma aventuras amorosas que teve, desde Copenhaga, Dinamarca, ao Hotel Tivoli, Lisboa, passando por Marbella ou Torremolinos. Politicamente, e como também seria de esperar, arrasa o 25 de Abril, a que chama «logro». Não sei se ainda é vivo. Mas que viveu, viveu. 
 
António Araújo