Tenho em mim todos os sonhos do mundo "Apenas quem é desprezível pode ter medo de ser desprezado Fernando Pessoa
sexta-feira, julho 13, 2012
01NOV2010 - 286º Dia - Já a navegar no Oceano Índico!
Chovia ao nascer do sol da passada segunda-feira, 25 de Outubro, pelo que os nossos convidados não puderam assistir à efeméride astronómica. Uns meses antes, o facto de estar a chover ao crepúsculo matutino seria comemorado pelos cadetes com um sorriso e um voltar para o outro lado na cama. Significaria que não haveria observação de estrelas para o ponto astronómico e não teriam que se levantar. Quando se é cadete na Sagres trabalham-se muitas horas diárias e qualquer pequena folga é bem-vinda. Estávamos em aproximação final à barra de Kelang e embarcámos piloto às 07:15 para percorrer as 10 milhas de canal até ao Terminal de Cruzeiros, onde chegámos às 09:00, sem novidade. O cais ficava longe de tudo! 20 minutos até à cidade de Kelang, de 1,2 milhões de habitantes, e uma hora, sem trânsito, até Kuala Lumpur (KL) . Recebemos a bordo os oficiais da Marinha Malasiana que nos vieram cumprimentar, despedimo-nos dos convidados que fizeram esta curta navegação connosco, e seguimos para a ronda de cumprimentos. Primeiro à autoridade portuária, depois à Polícia de Kelang onde tirámos a sempre útil fotografia com o seu chefe que pode sempre ser utilizada quando em apuros. Seguiu-se a visita ao Instituto Hidrográfico (IH) da Malásia, a única unidade naval nas proximidades. Um IH muito moderno, totalmente certificado em qualidade e com muitas semelhanças com o nosso. À noite oferecemos a nossa recepção oficial, a terceira numa semana. O mau tempo que se fazia sentir em KL e a distância à capital provocaram várias ausências de convidados que tinham confirmado a sua presença, mas ainda assim foi possível receber várias entidades e vários portugueses que ficaram até tarde a desfrutar desta oportunidade de matar saudades de Portugal. As exclamações de admiração e satisfação surgiam à medida que iam descobrindo os vários acepipes que lembram o nosso país. As maiores exclamações foram naturalmente para a entrada das travessas do bacalhau e, depois dos discursos e brindes, para a entrada dos pastéis de nata. Ao segundo dia oferecemos o tradicional almoço de retribuição de cumprimentos com o casal de Embaixadores de Portugal, o ex-vice CEMA que é descendente de portugueses, o administrador do terminal de cruzeiros, dois oficiais da Real Marinha da Malásia e as nossas já conhecidas Drªs Maria João Liew e Cátia Candeias. Nessa tarde ficámos livres e fomos fazer a nossa primeira incursão a KL, jantando em Kelang no regresso. Quarta-feira almoçámos num restaurante da famosa rua Bintang a convite do Embaixador Faria e Maya e as senhoras que organizaram esta nossa passagem pela Malásia. Seguiu-se um passeio pela cidade e o regresso a bordo para jantar, a convite da Autoridade Portuária, no Clube Náutico de Kelang. Um jantar informal com alguns dos dirigentes e respectivas mulheres, o que nos permitiu ficar a conhecer melhor a culinária e as pessoas. Os problemas e desafios dos casais são semelhantes aos nossos. O interessante deste jantar e de toda a Malásia é a forma como convivem as três principais comunidades: muçulmana, indo-budista e chinesa. Nota-se alguma prevalência e influência da primeira. No jantar todos beberam álcool menos um casal muçulmano, embora perfeitamente integrado nas conversas. Fizeram questão de nos dar a provar uma grande variedade de comidas, incluindo a sopa picante tailandesa de que já éramos fãs desde Banguecoque. Mas faltou uma coisa: o Rei das Frutas, o Durian. Disseram que sabia muito bem e que cheirava muito mal, sendo capaz de empestar o ar de qualquer casa ou restaurante por vários dias. O dia seguinte foi o mais carregado. Às 08:00 já estava no cais o Comendador Eugénio da Luz Campos, nosso Cônsul Honorário, com a menina dos seus olhos. O seu Mercedes K500 de 1936, único no mundo, que vinha para uma sessão de fotografias junto à Sagres, também de construção Alemã e de 1937. O carro é fabuloso, tem um "cantar" que parece um relógio. Ao que percebemos foi mandado construir por Hitler para oferecer a um herói da aviação alemã. Depois de várias vicissitudes teve um acidente e estava muito danificado na Austrália, onde o Comendador o foi descobrir. Depois de ter de mandar vir um engenheiro da Mercedes para vir autenticar a viatura porque não acreditavam que fosse original, esta foi reparada na Alemanha ao longo de três anos, estando agora impecável. Seguimos os oficiais, todos menos o de serviço, com o Comendador para KL a fim de visitar as torres gémeas Petronas. Nesse dia, logo muito cedo, tivera que ir um grupo de 8 pessoas para a fila a fim de adquirir os nossos ingressos, um por pessoa. Antes ainda parámos no Mercado de Artesanato de Pasar Seni onde se vendem sedas, roupas tradicionais, pedras, madeiras trabalhadas, cestaria, etc. As torres Petronas, com 452 metros de altura, são as torres gémeas mais altas do Mundo sendo um símbolo de KL e da Malásia testemunhando o seu progresso e conquistas socioeconómicas. Terminada a construção em 1996, as torres de 88 andares cresceram a uma velocidade impressionante de menos de 4 dias por piso e terminaram antes do tempo graças à brilhante ideia de entregar a construção de cada uma a empresas diferentes, uma russa e outra sul-coreana, o que originou uma feroz competição. Na base das torres encontrámos um centro comercial com lojas de luxo, alguns restaurantes e a sala de concertos da Orquestra Filarmónica da Malásia. Rodeada de jardins bem cuidados a visita é muito aprazível sendo a única dificuldade a de encontrar um local onde se consiga, com uma câmara normal, tirar uma foto de "corpo inteiro" às torres. Após esta memorável visita, o Comendador quis marcar ainda mais a nossa passagem pela cidade e convidou-nos para almoçar no restaurante rotativo da Torre Menara, a 282 metros de altura. Aí apareceu com o terceiro carro do dia, depois do K500 e do Aston Martin da manhã, um Ferrari, também de colecção. Construída para melhorar a qualidade das comunicações na região, a torre de 452 m é a quarta mais alta do Mundo. No restaurante pudemos experimentar os dois bufetes, asiático e internacional. Alguém falou do Rei das Frutas e o Comendador que merecia todas as atenções do pessoal do restaurante, mandou comprar Durian para nos dar a provar. Primeiro estranha-se mas depois até se gosta, caso se consiga ultrapassar o problema do cheiro intenso, tapar as narinas enquanto se mastiga é uma boa técnica. Mas comer Durian num dos mais luxuosos e carismáticos restaurantes de KL é que é inaudito. Só mesmo a pedido do nosso Datuk! Seguiu-se a visita ao Museu Nacional, alguns miradouros e centros comerciais e fomos jantar ao restaurante típico espanhol "La Bodega", na zona de Bangsar. Comemos tapas variadas. O terminal de cruzeiros onde ficámos atracados foi recentemente requalificado e reinaugurado. Tem boas condições de atracação apesar dos 4 metros de amplitude de maré e as acessibilidades resolveram-se colocando sempre táxis à disposição. Os transportes por cá são muito em conta para os nossos padrões. A obsessão da segurança é que obrigou a que as visitas se deslocassem de autocarro e fossem todas recenseadas à chegada. Ainda assim recebemos quase mil visitantes entre escolas e passageiros de um navio que ali esteve umas horas. A história da Malásia tem sido altamente condicionada pela sua localização geográfica estratégica sobranceira ao Estreito de Malaca e entre os oceanos Pacífico e Índico. Ao longo dos séculos esta posição foi atraindo comerciantes e conquistadores começando pelo sec. VII com os do Sião, os indonésios de Srivijaya e Majapahit, os muçulmanos de Malabar, da Pérsia e da Arábia. No sec. XVI os portugueses, no seguinte os holandeses e no seguinte os britânicos. O país é uma federação de estados localizados em duas zonas separadas: a peninsular - Península Malaia e Malásia Oriental situada na ilha do Bornéu. O povoamento foi feito a partir da China cerca de 2000 anos antes de Cristo. Mas a história do país está intimamente ligada a Malaca que foi fundada em 1400 por Parameswara, um príncipe proveniente de Sumatra que a tornou num grande porto internacional com muita prosperidade. Parameswara converteu-se ao islamismo em 1414, ao casar-se com uma princesa de Pasai, e passou a chamar-se Sultão Iskandar Xá, tornando Malaca num sultanato. Após a sua morte em 1424, sucedeu-lhe o filho que para se defender dos ataques do Sião, se aliou aos chineses, interessados naquela localização estratégica. Com os seus poderes reforçados, o sultanato controlava a península Malaia e Sumatra, tendo contribuído para a disseminação do islamismo na região. Malaca foi tomada pelos britânicos em 1795 que se estenderam a Singapura e a outros sultanatos da região ao longo do século seguinte. Em 1909 recebem também alguns estados do então Sião. Os ingleses tinham interesse puramente comercial nesta zona de onde exportam o estanho e o ouro. Depois introduzem a tapioca, a pimenta e o café. Mas foi a borracha, introduzida a partir do Brasil em 1877, que se tornou na principal exportação, para satisfazer as necessidades da Europa. Mais tarde o óleo de palma junta-se à borracha como produto mais exportado. Todos estes produtos estavam dependentes de uma poderosa força agrícola que os malaios não asseguravam tendo os ingleses trazido milhares de trabalhadores do sul da Índia. As minas, portos e indústria atraíram os chineses. Ocupada entre 1942 e 45 pelo Japão, foi devolvida aos ingleses que criaram a Península da Malásia com um governo controlado por si. Pouco depois a Malásia torna-se independente dos Ingleses, ao que se segue um período de 4 anos de guerrilha entre etnias malaia e chinesa (simpatizante da revolução cultural da China). Feita a pacificação através de campanha militar o país evoluiu em direcção ao estado moderno de hoje. Contudo as tensões étnicas continuam a existir. Foi essa diferenciação que em 1965 levou ao acordo de separação de Singapura por ter forte influência chinesa e, portanto, não se rever nas políticas islamitas da Malásia, e pelo seu interesse em manter uma boa relação com a Indonésia, incompatibilizada com a Malásia devido à anexação dos Estados do Bornéu. Os malasianos, povo da Malásia, são cerca de 27 milhões, constituídos por malaios (58%), esmagadoramente muçulmanos, chineses (32%) e indianos (9%). As confissões religiosas mais seguidas na Malásia são a muçulmana (53%), a budista (17%) e as crenças tradicionais chinesas (12%) e Cristã a partilhar com o Hinduísmo cerca de (16%). A língua oficial é o malaio mas fala-se muito o inglês e o mandarim. O Governo é assegurado por um Rei, escolhido entre os Sultões hereditários de 9 estados em regime de rotação mudando a cada 5 anos. O primeiro-ministro é escolhido da maioria do parlamento. A Malásia mantém o equilíbrio entre malaios, chineses e hindus através de um sistema de governo que combina desenvolvimento económico e políticas que promovem a participação de todas as etnias. A partir dos anos 80's o país cresceu muito e a economia deixou de ser baseada na agricultura para seindustrializar em áreas como informática e electrónica. A crise económica asiática afectou sobremaneira o país em 1998 provocando instabilidade pública e confrontos étnicos, mas a Malásia está de volta ao crescimento acelerado e, apesar de podermos observar alguma prevalência de regras islamitas, todas as etnias e credos convivem aparentemente sem problemas de maior. No entanto, existe uma campanha muito forte para a união dos malasianos. Nas ruas e por todo o lado a imagem do primeiro-ministro de indicador em riste e o logótipo "1" com as cores do país têm por objectivo estratégico apelar à unidade nacional perante tanta diversidade cultural e religiosa. O petróleo, o comércio marítimo com o porto de Kelang a ter um papel fundamental, a indústria electrónica e a agricultura continuam a assegurar a viabilidade económica e progresso do país. Após as despedidas e agradecimentos largámos às 10:00 desta sexta-feira. Aproveitámos o vento para afastar do cais e a suave corrente para descair a ré até estar safo e avançar para sair o canal norte. Havia um rebocador pronto mas demos instruções ao piloto para que este ficasse safo sem interferir. Quando a certa altura a aguagem do rebocador estava a interferir com a nossa manobra advertimos o piloto que prontamente o mandou afastar. Hilariante foi quando estabelecemos o nosso dispositivo de protecção contra piratas e explicámos ao jovem e inseguro piloto que o pessoal armado era "for the pirats" e ele entendeu "for the pilots", desfazendo-se a rir, e aliviado, quando percebeu o engano. Depois de desembarcado o piloto ainda passámos por um navio tanque acabado de encalhar na margem do canal e que, com a maré a vazar, estava em sérios riscos. Mais uma para nos lembrar que estas coisas acontecem e não nos deixar aliviar a atenção a todos os pormenores. Passámos ontem entre a ilha de Samatra e as Ilhas Nicobar deixando para trás Banda Aceh que se situa ao norte da Samatra. Estamos oficialmente no Oceano Índico e terminámos o périplo asiático. Foi uma sequência infernal de portos com muita actividade protocolar e muito pouco tempo de navegação pelo meio, o que nos dificultava o descanso e os preparativos. Já se sente uma ondulação de oceano, com cerca de dois metros de altura. As previsões meteorológicas indicam um agravamento do tempo com a passagem de uma depressão cavada vinda de leste. Apesar de apresentar ventos menos favoráveis por sul, já decidimos que a vamos deixar passar a norte para termos mais margem de manobra. Até breve! por: Pedro Proença Mendes, Cte do NRP "Sagres"