A navegação para Sul continuou sem novidades. Muito calor, muita humidade, vento fraco e aguaceiros todos os dias. Seguindo os corredores arquipelágicos, entrámos no Mar das Molucas a 3 de Setembro. Passámos o Equador no dia seguinte e no dia 5 entrámos no Mar de Banda. Cada vez fomos tendo menos companhia de navios. Terminou a azáfama do mar do Sul da China. Na manhã do dia 6 colocámo-nos ao abrigo, por SW da ilha de Atauro, para colocar o bote das pinturas na água e a brigada do costado poder trabalhar em segurança para que cheguemos a Díli a brilhar. Ao longo da última semana o navio mais parece um estaleiro com trabalhos em todas as frentes. Os vernizes, mais sensíveis, obrigaram-nos a voltar várias vezes para Norte para fugir a aguaceiros que poderiam estragar o trabalho de alguns dias. Impossibilitados de andar à vela por termos todos os cabos levantados para tratar as madeiras das escoteiras e mesas de malaguetas, aproximámo-nos muito rapidamente de Timor e a Marinha decidiu aproveitar para rentabilizar a nossa presença associando-nos à Cooperação Técnico-Militar. Na verdade está a terminar uma formação alargada de Militares timorenses, da Componente Naval, com o auxílio da nossa Marinha. São 150 oficiais, sargentos e praças. Os melhores de cada grupo tiveram uma experiência de três dias de navegação a bordo da nossa barca. Foram embarcados em Díli no dia 9 de manhã e navegámos à vela até Oecusse, o enclave no Timor indonésio onde há 5 séculos desembarcaram os portugueses. Foi numa praia actualmente assinalada com uma cruz, em Lifau. Nesse local ainda se pode observar uma grande vala que, segundo os locais, foi escavada para permitir a entrada e esconderijo dos navios dos portugueses no meio do arvoredo.
Fundeámos frente a Pante e aproveitámos este período para continuar a tratar do costado e dos restantes trabalhos a bordo. À tarde retomámos a disputa das baleeiras à vela. O Engenheiro Oliveira levou um avanço de meia hora à passagem da primeira bóia mas o vento caiu e ficámos incapazes de vencer a corrente e não terminámos a regata. Continua invencível! Nessa tarde também recebemos a visita de vários alunos de uma escola secundária enquadrados por algumas freiras portuguesas oriundas da Madeira e fomos a terra encontrar-nos com o Embaixador Luís Barreira de Sousa para uma curta visita às autoridades locais e ao Padrão de Lifau. Tomámos um leite de coco e seguimos para bordo a fim de suspender antes do pôr-do-sol pois estávamos numa zona pouco conhecida para nós do ponto de vista dos ventos, correntes e fundo, e não nos sentíamos seguros em lá pernoitar. Navegámos durante a noite por forma a estar a barlavento de Díli ao nascer do dia e fazer uma passagem à vela frente à cidade e a toda a marginal até Buku Acollo, que repetimos após o almoço. Fundeámos ao fim da tarde frente à residência do Embaixador de Portugal com uma grande e bem iluminada bandeira portuguesa para reforçar esta nossa presença em Timor Leste.
Os jovens alunos que embarcámos participaram nas manobras e nos trabalhos de preparação do navio, assistiram a exercícios de homem ao mar e de incêndio a bordo, e acima de tudo, apreciaram o desempenho de uma guarnição organizada e disciplinada que faz com que as coisas aconteçam e apareçam feitas quase sem se dar por isso! Para a maioria foi o seu maior período de embarque com três noites passadas a bordo.
O Embaixador de Portugal aproveitou também para conhecer esta “arma de apoio à diplomacia” e as suas potencialidades. Tivemos longas conversas ao longo dos dois dias que connosco passou. A nós permitiu-nos conhecer melhor este jovem país e os desafios que tem pela frente.
O dia 12 amanheceu com uma suave neblina sobre a cidade o que foi para nós um bom sinal: não havia vento em terra, o que facilitaria a manobra. Neste porto não iríamos contar com Piloto e, no último momento, apareceram dois rebocadores disponíveis mas não tínhamos forma de nos fazer entender com os seus mestres pelo que optámos por não os utilizar. Apesar da falta de vento caçámos todo o pano latino e apenas os velachos do redondo para mostrar as suas Cruzes de Cristo.
Passámos o estreito canal a oeste da barreira de coral que protege a baía, muito bem sinalizado por duas conspícuas balizas. Lentamente e um pouco atravessados para compensar a corrente que se fazia sentir para leste. Avançámos para o cais que não estava completamente desimpedido como nos tinham prometido. Foi necessário “estacionar” antes do ferry e depois de um cargueiro e, muito suavemente levámos o navio até conseguir agarrar a proa e fazer cabeça de forma a encostar a popa. Atracando por EB, o efeito lateral do nosso hélice dificulta a manobra pois ao meter máquina a ré para travar o navio, este aproxima a proa do cais e estraga a aproximação. Indo lentamente e dando uma palhetada avante com leme a BB conseguimos colocar o navio paralelo ao cais e depois tratar de o parar quando já se passaram cabos. Carregámos todo o pano de tacada já com cabos passados!
Despedimo-nos do Senhor Embaixador, recebemos vários amigos que aqui estão em missão e alguns jornalistas, a nossa Lusa, a nossa RTP e a TVTL.
Feitas as despedidas dos alunos timorenses nossos convidados passámos à preparação do navio para o porto: ferrar pano, estender iluminação de gala, desembarcar o lixo das últimas semanas, limpar, polir, etc. Foi até às 13:30.
Entretanto veio a informação do nosso embaixador: o presidente Ramos-Horta iria estar fora de Díli nos próximos dias devido à Volta a Timor em Bicicleta e manifestou interesse em visitar o navio. Chegou no seu Mini Moke e veio acompanhado com a Dr.ª Kirsti, o Alexandre, o Kay Holok e o Dany, mulher e filhos do primeiro-ministro Xanana Gusmão. Visitaram o navio muito interessados e levaram pins, autocolantes e posters da Sagres para os colegas da escola. O presidente apreciou muito a Sagres. “Pensava que era um pequeno barco que balançaria muito” e achava que o embaixador estava a exagerar quando lhe disse que “tinha quase 100 metros e levava 150 pessoas”. Ficou para almoçar na câmara com todos os oficiais. Falou-nos da gratidão que tem para com os portugueses e do excepcional trabalho da nossa diplomacia que levou à vitória diplomática sobre a Indonésia e a Austrália, sem exageros que os ostracizassem e que permitiram que estes países sejam parceiros na construção do futuro de Timor. Contou-nos histórias suas, falou-nos de bons e maus momentos, da sua falta de veia poética quando comparado com Xanana Gusmão ou Mari Alkatiri, a propósito das palavras que nos deixou no Livro de Honra:
Aos homens e mulheres da “Sagres”:
Sempre uma alegria enorme, como a enormidade dos mares que os homens e mulheres do “Sagres” tão bem conhecem, veneram e temem, que re-encontro com os irmãos do Além-Mar Portugal.
“Sagres”, escola da tradição do Infante Dom Henrique e Vasco da Gama e obra de engenharia e beleza!
Bem hajam, boa viagem!
José Ramos-Horta
Perante a vontade de alguns de nós assistirmos a uma missa em português e de estas se realizarem antes da nossa atracação, o nosso embaixador intercedeu junto do Monsenhor José Leite Nogueira, representante da Santa Sé em Timor Leste e, às 17:30 comparecemos alguns na Igreja Motael, dedicada a Santo António, para um momento de partilha da fé Cristã que tem muito mais significado pelas circunstâncias em que o vivemos.
Jantámos no Castaway! O nosso médico, Bruno Stuart, fazia anos e conseguimos um serão só para nós. O Castaway é o restaurante de um Clube de Mergulho, uma das melhores actividades lúdicas na ilha, onde fomos encontrar as mais diferentes nacionalidades correspondentes às inúmeras ONG’s, corpos da ONU, cooperações internacionais, etc., que pululam na cidade de Díli. Disseram-nos que ao fim de 2 semanas estaríamos habituados ao facto de o último a ser servido o ter sido mais de uma hora após o primeiro. Mas isso não foi normal porque o chefe de sala veio apresentar desculpas e só cobrou as bebidas. Regressámos a bordo cansados e fizemos um resto de serão “em família”.
Conta a lenda que há muito, muito tempo, em Massacar, numa ilha indonésia chamada Celébes, vivia um velho crocodilo. Já sem forças para apanhar peixes, não teve outra alternativa senão aventurar-se terra adentro para tentar caçar algum animal que lhe saciasse a fome. Andou, andou e não conseguiu apanhar nada para comer pelo que resolveu regressar à água. O caminho de volta era longo e o sol era quente. Esgotado, o crocodilo perdeu as forças e ficou prostrado. Um rapaz ia a passar e encontrou o crocodilo exausto. Teve pena dele e ofereceu-se para o ajudar a voltar arrastando-o pela cauda de volta à água. O crocodilo ficou-lhe muito grato e ofereceu-se para, a partir daquele dia, o levar às costas pelas águas dos rios e do mar. E assim foi, os dois novos amigos fizeram muitas viagens juntos e reforçaram a sua amizade.
Mas um dia a fome foi mais forte e o crocodilo achou que não tinha outra solução que não fosse comer o rapaz. Antes de se decidir, perguntou aos outros animais o que achavam da ideia. Todos lhe disseram que era muito ingrato da parte dele querer comer o rapaz que o tinha salvo. Percebendo como estava a ser injusto e que não voltaria a ser aceite pelos outros animais, envergonhado, resolveu partir para o mar e convidou o seu único amigo para o acompanhar. O rapaz saltou-lhe para as costas e saíram pelo mar fora em direcção ao Oriente, onde o Sol nasce.
A viagem já ia longa quando o crocodilo começou a sentir-se cansado. Já exausto, resolveu parar para descansar, mas, naquele momento, o seu corpo começou a crescer e a transformar-se em pedra e terra. Cresceu tanto que ficou do tamanho de uma ilha. O rapaz, que viajava no seu dorso, passou a ser o primeiro habitante daquela ilha a que chamou Oriente. E assim nasceu a ilha de Timor, com a forma do velho crocodilo e cujo nome significa Oriente no dialecto malaio.
Conta a história que doze mil anos antes de Cristo já habitava a ilha de Timor um pequeno grupo que se dedicava à caça e agricultura.
Escravos, cera de abelha e sândalo, foram a justificação para o comércio entre Timor e a Malásia e a China de que há registos desde o sec. VII. Atraídos pelo sândalo, madeira nobre utilizada na perfumaria e móveis de luxo, que cobria praticamente toda a ilha os portugueses chegaram ao território em 1515 desembarcando em Oecusse. Pouco depois chegaram os Holandeses e após várias disputas, os portugueses ficaram com a metade oriental da ilha que estava politicamente dividida ao meio pelos reis locais.
A sua localização estratégica entre a Austrália, Indonésia, Filipinas e China levou à sua ocupação pelos Japoneses durante a II Guerra Mundial. Estes criaram campos de concentração e, em conjunto com a degradação das condições de vida e os bombardeamentos aliados, provocaram 60 000 mortos, uma catástrofe se atendermos à escala. Após a guerra, Portugal recuperou a posse deste seu território ultramarino de onde saía um dos melhores cafés do mundo, embora nunca se lhe tenha dado grande importância nem canalizado grande investimento. Em 1945 a Indonésia tornou-se independente da Holanda mas nunca reclamou Timor Leste. Após a revolução dos cravos em Portugal, iniciou-se o processo de descolonização e foi dado a escolher ao povo timorense a integração na Indonésia ou a independência. Formam-se partidos a favor das duas soluções e o General Suharto apoia o partido integracionista. Suharto tinha conquistado o poder a Sukarno através de um golpe de estado em 1966.
Nas eleições da primavera de 1975, 90% dos votos vão para os partidos independentistas e apenas 10% para o integracionista. Venceu a FRETILIM com 55%. Os boatos de um golpe de estado marxista que estaria a ser preparado pela FRETILIM precipitam a guerra civil em Agosto de 1975, fazendo 3.000 mortos e as tropas indonésias iniciaram a infiltração no território pela fronteira com o Timor Oeste. Em Outubro de 1975 cinco jornalistas estrangeiros foram assassinados pelo exército indonésio na cidade de Balibo, na fronteira, quando tentavam cobrir os movimentos militares indonésios em Timor Leste. Perante a impunidade indonésia e esperando obter apoio internacional, a FRETILIM declarou a independência de Timor a 28 de Novembro de 1975. No dia 7 de Dezembro, o exército indonésio iniciou a invasão de Timor e o bombardeamento da capital. A Assembleia Geral da ONU condenou a invasão indonésia numa resolução que não teve qualquer efeito. Apenas a Austrália, reconheceu a autoridade indonésia sobre o Timor Leste. Começa uma repressão que resulta na morte de 200 a 300 mil timorenses pela violência, pela fome, pelo deslocamento forçado das populações e pela criação de campos de concentração. A FRETLIM cria a guerrilha FALINTIL que chegou a controlar 80% do território. Apesar da superioridade numérica esmagadora e do equipamento mais moderno, os indonésios não impediram os 24 anos de resistência das FALINTIL. Durante anos Timor Leste ficou totalmente isolado do Mundo, apesar de em todos os seus actos e presenças internacionais o Governo de Portugal fazer questão de mencionar o problema. Após a morte do líder da resistência e comandante das FALINTIL, Nicolau Lobato, a dia 31 de Dezembro de 1978, inicia-se a liderança do seu companheiro, José Alexandre Gusmão, conhecido na guerrilha como Ray Kala Xanana, que transforma as FALINTIL numa frente ampla de resistência em 1987 e cria no ano seguinte o CNRT, Conselho Nacional da Resistência Timorense, que reúne todos os partidos.
Na sequência de uma ligeira abertura da indonésia, o papa João Paulo II visita Timor em 1989, assistindo-se a manifestações pro-independência, duramente reprimidas. No dia 12 de Novembro de 1991, no Cemitério de Santa Cruz, o exército indonésio atira na multidão que prestava homenagem a um estudante morto pela repressão. Morrem pelo menos 200 pessoas mas as imagens do massacre, realizadas por jornalistas estrangeiros, fazem com que o mundo descubra a tragédia do Timor. Depois vem a prisão e condenação de Xanana Gusmão, a atribuição do Premio Nobel da Paz de 1996 ao bispo Carlos Ximenes Bello e José Ramos-Horta, a visita do presidente Nelson Mandela a Xanana na prisão e sua pressão para uma solução negociada, a queda do regime de Suharto e a ascensão de Yusuf Habibie.
Portugal e a Indonésia negociam a realização de uma consulta popular supervisionada pelas Nações Unidas. A 30 de Agosto de 1999, mais de 98% da população vai às urnas, votar num silêncio que os observadores internacionais são unânimes em chamar de impressionante. Os resultados não deixam margem para dúvidas: 78,5% dos timorenses escolheram a independência. Antes da proclamação dos resultados, milícias pro-integração armadas de catanas desencadeiam uma violência inédita caçando e matando nas ruas todos aqueles que supõem ter votado pela independência. A população foge para as montanhas ou busca refúgio nas igrejas e prédios de organizações internacionais que são cercadas e invadidas obrigando à evacuação de todos os estrangeiros. A ONU decide formar uma força internacional para intervir, mas os 2.000 solados da INTERFET só entram em Díli no dia 20 de Setembro e encontram um país totalmente devastado e incendiado. Quando Xanana Gusmão volta a Díli, no dia 22 de Outubro, ao ver o que sobrou do seu Timor, diz: "Eu achei que íamos ter que começar do zero. Mas é muito pior do que eu pensava". Foi eleito em 2001 Presidente da República Democrática de Timor Leste que em 20 de Maio de 2002 se tornou na mais nova nação do Mundo. O Primeiro-ministro e Ministro dos Negócios Estrangeiros foram, respectivamente, Mari Alkatiri e José Ramos-Horta.
Ainda houve mais uma crise em 2006 que levou à saída dos estrangeiros mas o país está agora estabilizado e a percorrer o caminho da organização de instituições e infra-estruturas com o apoio técnico da comunidade internacional onde Portugal, a Austrália e a Indonésia têm um papel importante. A exploração conjunta de gás com a Austrália no Mar de Timor está a permitir a criação de riqueza necessária para o crescimento e desenvolvimento de um país em que o português, lenta e dificilmente, se vai reinstalando depois de ser adoptado como Língua Oficial, juntamente com o Tétum.
Esta terça-feira chega a Díli o Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada. Vem a convite do Major General Taur Matan Ruak, Comandante das Forças Armadas de Timor Leste, para participar nas cerimónias de encerramento da formação dos 150 elementos da Componente Naval das FDTL. O Comandante da Marinha Portuguesa faz coincidir a sua visita com a presença da Sagres honrando-nos com a sua motivadora presença durante esta longa missão de Volta ao Mundo.
Depois contamos tudo!