segunda-feira, julho 02, 2012

15DEZ2010 - 330º Dia - Alexandria e epopeia do Mar Mediterrâneo! Apesar de vivermos em plena época da democratização da fotografia e do vídeo, continua a ser verdadeira a frase escrita em 1557 por D. Gonçalo da Silveira: "Assim como a morte não a pinta senão quem morre, nem pode ser pintada senão vendo quem está morrendo, assim o trago que passam os que navegam de Portugal para a Índia, não o pode contar senão quem o passa nem o pode entender senão quem o vê passar." Na verdade acabamos de passar por uma dessas experiências que não conseguimos descrever nem por palavras nem por registo de imagens. Aproveitamos agora uma relativa bonança após 4 dias de extraordinário mau tempo para dar conta dos últimos acontecimentos da nossa viagem. Após a entrada no porto interior de Alexandria, embarcaram não um nem dois mas três pilotos! Nesta fase só precisávamos deles para falarem com os rebocadores e o pessoal da manobra de cabos no cais. Mas logo pediram café e brioches, elogiaram-nos e desfizeram-se em salamaleques até ao limite da paciência. Seguiu-se a já tradicional procura pelos souvenirs... Recebemos os representantes da Embaixada no Cairo, o Cônsul Honorário, os representantes da Marinha Egípcia, agentes, etc. e demos inicio a um programa de visita muito condicionado pela segurança. O cais era óptimo! Um terminal de passageiros muito limpo e moderno que viemos a verificar ser um oásis no caos da cidade. As autoridades não nos permitiram receber jornalistas nem abrir a visitas públicas. Só podíamos circular em Alexandria, e para ir ao Cairo só através de uma agência de viagens que nos foi imposta mas com quem conseguimos negociar uma boa excursão por um bom preço, aproveitando a época baixa. Iniciámos o programa protocolar com uma cerimónia de deposição de coroa de flores no Memorial do Marinheiro Desconhecido, com uma Guarda de Honra nossa e outra egípcia. Seguimos para o Comandante Geral da Marinha e depois para o Governador que pousou com gosto para a foto "atenção que eu conheço este senhor!". Falámos de Portugal, da Sagres e desta missão. O Governador tinha boas noções sobre Portugal mas ficou admiradíssimo quando lhe dissemos que a nossa população é de apenas 10,5 milhões. Mais uma vez se verifica que, fruto da nossa história e da nossa politica externa, a dimensão percepcionada pelos estrangeiros é bem maior do que a real. Seguiu-se o almoço de retribuição de cumprimentos a bordo e ficámos livres para a tarde dessa segunda-feira e toda a terça-feira. Aproveitámos para desentorpecer as pernas numa corrida pela cidade para a conhecer. Foi bem mais longa que o normal porque nos perdemos mas foi um belo passeio e muito esclarecedor. É uma cidade que fervilha de comércio de rua, onde se vende de tudo, imensas bancas de frutas e vegetais a ladear com as das carnes, estas sem qualquer tipo de condições mínimas. O lixo acumula-se pelas ruas, e o pó do deserto que se espalha por todo o lado também não ajuda ao bom aspecto. Os carros tomam o lugar dos peões nos passeios, e as pessoas tem de se misturar nas ruas com estes, mas parecem conviver bem. Vem-se muitas carroças, algumas para passeios turísticos, mas a maioria para transporte de mercadorias. É talvez o sítio mais exótico da viagem, e comentava-se, em tom de brincadeira, que a nossa ASAE "fecharia" este país. Como era dia de aniversário do Engº Gaspar fomos jantar ao Fish Market, restaurante recomendado para um peixe assado na brasa que se podia acompanhar com vinho ou cerveja, ao contrário de muitos onde imperavam as regras muçulmanas. Mas tivemos uma grande discussão porque foram sempre protelando a chegada das bebidas e, já com a comida na mesa, informaram que não serviam bebidas alcoólicas. Nem o cartão-de-visita do cônsul, que reservou o restaurante, nem a foto com o Governador, resolveram o imbróglio e bebemos água, chá e sumos. Afinal, por ser véspera do ano novo muçulmano, o governo decretou que não se serviria álcool em nenhum local como depois nos disseram. Podiam ter dito logo! Terça-feira foi o Ras as-Sana, o dia de ano novo dos muçulmanos, do ano 1432! Aqui não é utilizado o calendário deles mas em alguns países árabes sim. A diferença para o nosso é que utilizam 12 meses lunares que têm 29 ou 30 dias - o tempo que a Lua leva a dar uma volta à terra desde que está alinhada com o sol, em Lua Nova, até passar pelas fases todas. O início da contagem é a data que diz respeito ao nosso ano 622 dC. Ano em que o profeta Maomé chegou a Medina vindo de Meca, de onde tinha sido expulso. É este acontecimento (Hégira) que marca o início do calendário muçulmano. Com o dia livre, aproveitámos para ir conhecer a nova Biblioteca de Alexandria, enorme e muito moderna, com uma configuração em anfiteatro e boas entradas de luz indirecta pela cobertura, inspirada na célebre biblioteca que ardeu há cerca de dois mil anos, sendo um ponto de atracão turístico e dando imenso jeito aos estudantes da universidade que fica do outro lado da rua. Depois metemo-nos nos mercados de rua, nas lojinhas e na aventura que é uma cidade árabe. O difícil foi encontrar um restaurante com condições mínimas de salubridade, também não há muitos dignos desse nome, sobretudo fora da marginal, problema que solucionámos metendo-nos num táxi para ir comer a um dos dois grandes centros comerciais da cidade onde parece que estamos num dos nossos, se nos abstrairmos dos trajes árabes que são frequentes. Regressados à cidade velha continuámos a nossa agradável visita discutindo os preços em escalões de 5 libras egípcias, isto é, cerca de 60 cêntimos de euro. As discussões até eram agradáveis e os vendedores muito simpáticos. Quanto mais afastados das zonas de turistas, melhor. O nosso grande problema, os verdadeiros chatos, eram os taxistas que nos faziam esperas à saída do porto e após duras discussões acertando o preço, que ficava sempre várias vezes acima do que um local pagaria, tentavam levar-nos, não ao local que pedíamos, mas a lojas ou restaurantes onde tinha comissão! Os táxis, os mais velhos e degradados que já vimos, são na sua maioria de marca Lada e alguns Peugeot de modelos que nos remetem até à nossa infância. Para além da Biblioteca, visitámos o Anfiteatro Romano, as Catacumbas, algumas igrejas e mesquitas, hotéis de época, a Fortaleza Qaitbay, esta muito bem preservada e edificada no local onde se julga ter existido o mítico Farol de Alexandria. Os souks, mercados tradicionais árabes, foram o que mais nos agradou, principalmente aqueles onde os turistas menos penetram. Neles comprámos desde frutas e aperitivos até papiros, pratas, caixas com embutidos de madrepérola, cachimbos de água, etc. Tivemos ainda, comandante e imediato, a honra de uma visita guiada ao antigo Iate Real Mahroussa, com 145 metros de comprimento, era um autêntico palácio flutuante tendo sido o primeiro navio a atravessar o Canal do Suez (1869), com as mais altas individualidades dos governos e monarquias europeias. O mesmo sucedeu na reabertura do canal, após a guerra, em 1973, com o presidente El-Sadat a bordo. O Rei Farouk, em 1952, após o fim da monarquia, navegou nele para o exilo em Itália. Foi usado em conferências históricas como a dos países não alinhados, no tempo do presidente Nasser. Foi navio-escola de 1955-1973. Em 1976, tal como a Sagres, marcou presença nas comemorações do bicentenário dos EUA. Houve quem passasse o tempo nos centros comerciais por já ter saudades deste ambiente. Na realidade, fora das ruas principais parecia muitas vezes que estávamos num pós-guerra tal era o estado das ruas e dos edifícios. Em 15 minutos de carro podemos ter um contraste como da noite para o dia, é o tempo que demorámos a chegar aos novos espaços comerciais. Por outro lado, a cidade tem um rico património histórico, fruto da sua localização estratégica. A nossa recepção foi oferecida na quarta-feira e o número de presenças foi relativamente baixo apesar de se terem enviado 450 convites. Algumas pessoas vieram exclusivamente do Cairo para a recepção, o que representa 3 horas em cada sentido devido ao trânsito infernal, só comparável ao que vimos na Índia. Para a excursão que contratámos para conhecer o Cairo, dividimos a guarnição em três grupos e, um em cada dia, saía de bordo às 06:30 para regressar às 23:00 com direito a visitar as pirâmides de Gizé, o Museu do Cairo, a Cidadela, um Souk, etc., com um guia árabe que falava muito bem o português, e que chamava o grupo por família. Num autocarro de qualidade muito acima da média, porque até isto entrou na discussão do preço por email, aproveitámos a viagem de quase quatro horas até Gizé para acabar de dormir a noite, apesar dos solavancos e toques de telemóvel do condutor. O staff do autocarro era o condutor, o representante da agência, o guia e o agente secreto - um segurança bem armado. Acompanhava-nos ainda uma viatura de polícia com três polícias uniformizados que completavam o esquema de protecção e abriam caminho entre o tráfico caótico. O turismo a par da agricultura e dos proveitos do canal é das principais fontes de receita do país, sendo que a exploração do gás natural deixa antever mais prosperidade. O atentado terrorista a um autocarro de turistas, há poucos anos, faz com que as autoridades façam escolta individual cada autocarro de turistas a fim de preservar a imagem de um país seguro, que de facto é, à parte os actos terroristas não há pequena criminalidade que importune ou que se percepcione. Gizé, com as suas pirâmides, é uma das sete maravilhas do Mundo Antigo. Eram 12 pirâmides, sendo três túmulos de faraós, 3 de rainhas e outras três de familiares ou pessoas importantes. A principal e maior (com cerca de 5000 anos), Quéops, túmulo de Khufu, foi construída ao longo de 20 anos por 25 mil homens trabalhando 10 horas por dia. A sua base é um quadrado com 230 metros de lado com uma diferença máxima de 4 cm entre cada um dos lados. A altura era de 146 m mas agora é de apenas 137 m, porque afundou com o tempo. São mais de dois milhões de blocos de granito com um peso médio de 2,5 toneladas embora algumas pedras da base tenham 15 toneladas. As pedras vieram de barco de Assuão ou de uma pedreira ali perto cujo resto foi transformado numa gigante imagem da esfinge. Aqui os vendedores de bugigangas são muito agressivos e dominam todas as técnicas de vendas que se possam imaginar. O Egipto tem 84 milhões de habitantes dos quais, 95% vivem no Vale do Nilo, que corresponde a apenas 5% do seu milhão de quilómetros quadrados. Tem havido uma grande explosão demográfica nos últimos anos, é consequência do objectivo estratégico para o país ter mais peso na escala regional, em 2003 a população tinha menos 10 milhões. A pressão demográfica é tão grande que há habitações dentro do perímetro das pirâmides e nos terrenos férteis do vale do Nilo. São edifícios em tijolo a perder de vista, de gente pobre que veio para a cidade. Vê-se pouca ou nenhuma cor nos edifícios habitacionais, diz-nos o guia que as casas por pintar não pagam impostos, por se presumirem por acabar. O pó do deserto também faz a sua parte harmonizando a tonalidade de tudo. Há até um caso caricato: a Cidade dos Mortos é um bairro construído dentro de um grande cemitério. Quase todo o país é deserto. O Sinai, o Sahara e o Ocidental são disso exemplos. Dizem que o Sahara começa em Gizé e termina em Marrocos. Por aqui 90% da população é muçulmana sunita, e há uma boa parte muito cumpridora das cinco regras principais desta religião: •1. Acreditar que Alá é Deus, no profeta e nos seus livros; •2. Fazer cinco rezas diárias; •3. Jejuar no mês do Ramadão do nascer ao pôr-do-sol, i.e., não beber, fumar ou comer; •4. Ir a Meca pelo menos uma vez na vida; •5. Ajudar os necessitados. Os restantes 10% são cristãos em parte descendentes dos Coptas (Cristãos Jacobinos do Egipto), considerados os verdadeiros egípcios autóctones. Verificámos que muitos homens tinham uma marca na testa que podia ser um calo ou uma queimadura de atrito. Viemos a saber que é sinal de cumprimento das rezas diárias devido ao tocar com a cabeça no chão, há uma certa necessidade de se empolar esse calo, quanto maior mais devoto se demonstra ser. Há quem diga que há muitos devotos que se preocupam mais com o parecer do que com o ser, centrando-se no "cultivo" do calo. Mas há outras regras tais como a de as mulheres apenas poderem mostrar o rosto e as mãos (é assim para 80% das mulheres, há um crescente número de 10% que veste de preto e só se lhe vêm os olhos, e outros 10% que traja à ocidental); a sexta-feira ser equivalente ao nosso Domingo e haver 17 grandes pecados de onde destacamos: Desobedecer aos pais; Insultar uma mulher; Proferir falsos testemunhos; Adultério; Beber bebidas alcoólicas; Comer carne de porco; Jogar a dinheiro; Suicídio; Matar; Roubar; Insultar os profetas, etc.. A origem da religião muçulmana deu-se quando o Anjo Gabriel revelou o Profeta Mahomé (570 - 632dC) quando este tinha 40 anos. O país tem 30 000 mesquitas e 4 000 igrejas. O Cairo é considerado a cidade das mil mesquitas, com mais de 13 000. Visitámos a Cidadela Al Qalaa onde viveram durante 700 anos os governantes do país, e a imponente Mesquita de Mohammed Ali que fica dentro do seu recinto. O nosso almoço foi um bom bufet de comidas locais num dos muitos navios-restaurante atracados nas margens do Nilo. Seguiu-se a visita mais esperada, ao Museu Egípcio. Foi o primeiro edifício construído de raiz para a função de Museu tendo sido inaugurado em 1902. Em Novembro de 1922 o britânico Howard Carter descobriu aquela que viria a ser a maior atracção deste museu. O túmulo do rei-rapaz Tutankhamun que reinou o Egipto unificado desde os 9 anos de idade até à sua morte com 19 e foi sepultado mumificado e com os seus objectos pessoais. Um verdadeiro tesouro que incluía sarcófagos de ouro, as carruagens em que se deslocava, as suas mobílias, bengalas, jóias, etc.. Foram 10 anos de escavações e outros tantos de catalogação de mais de 5000 peças. O facto de estar intacto e de ter sido explorado com método é que o torna único, tendo revelado importantes informações sobre as técnicas de mumificação. Presume-se que ainda haja alguns túmulos deste género por descobrir. A riqueza e esplendor do recheio do museu nada condiz com as suas condições, parece parado no tempo, talvez em meados do século passado, e por isso se justifica plenamente a construção em curso de um novo. O período dourado do Egipto coincide com a época dos faraós, única autoridade que resulta da conquista do Baixo Egipto, em 3100 a. C., por Menés, rei do Alto Egipto, dá-se a assim a unificação. O faraó era considerado um deus, tinha um poder sagrado e absoluto, sendo o chefe político, militar e religioso. O Império manter-se-á até 525 aC, altura a partir da qual sofreu uma sucessão de invasões estrangeiras. Estava sob o domínio do império Persa quando, em 332 aC, Alexandre Magno o invadiu, sendo recebido como um libertador. Quando morre, em 323 aC, inicia-se a dinastia ptolemaica que governaria o país até ao ano 32 aC quando, governado pela famosa Rainha Cleópatra, não resistiu às invasões romanas. Em 642 dC, os muçulmanos ocupam o Egipto e instalam a sua capital no Cairo. Seguem-se-lhe os turcos, Napoleão, otomanos, ingleses e alemães, o que na prática corresponde a cerca de 2000 anos de ocupação estrangeira, e de muitas pilhagens de património. Terminámos a nossa visita ao Cairo com a visita a um souk onde despachámos as nossas últimas libras a troco de souvenirs. Nesta altura já discutíamos sem contemplações, testando os vendedores. Quando não vendiam aos preços baixíssimos que propúnhamos, ia-mos à banca seguinte e propúnhamos um pouco acima e assim por diante até comprar. As bugigangas repetem-se de loja para loja e, se houver tempo, podemos aproveitar este facto. O problema é quando está um turista nórdico a comprar sem discutir ou a discutir sem manha, pagando cinco e seis vezes mais que nós. A viagem de regresso serviu para descansar de um intenso dia de turismo e discussão. Os egípcios referenciam Portugal a três aspectos: O futebol através de Figo, Cristiano Ronaldo e Manuel José que fez um óptimo trabalho como treinador do Al Ali do Cairo; As laranjas que os portugueses trouxeram da China (por aqui Portugal significa laranja), melhoraram e introduziram na região; A Batalha de Diu, em 1509, em que D. Francisco de Almeida arrasou a esquadra egípcia deixando-os tão vulneráveis que foram invadidos pelos turcos. Embora já aqui abordada, importa relembrar que esta batalha naval, das mais relevantes da nossa história, cimentou a presença portuguesa na Índia assim como a rota comercial marítima em detrimento da terrestre, secando literalmente o Egipto, de tal forma que não se esqueceram de nós, pensando que somos maiores do que realmente somos. Largámos na passada sexta-feira de manhã, com o tempo a agravar-se. O Piloto era apenas um e desembarcou ainda antes de sairmos do porto interior. Sabíamos que se aproximava uma tempestade, mas nada de extraordinário. Aliás, as previsões indicavam-nos três tempestades ao longo do caminho até Lisboa. No Mar Jónico, entre a Grécia e a Itália, sim, havia previsão de ondulação de 6 a 8 metros! O canal de saída é estreito mas está bem balizado com bóias e tem um bom enfiamento de faróis que seguimos sem problemas, no entanto podemos avistar 3 navios encalhados dentro do porto. Lá fora, caçamos estai, bujarrona de dentro, estai da gávea e mezena baixa e íamos a fazer 8 nós com a ajuda do motor a 2000 rpm. Após o jantar o tempo começou a piorar e à meia-noite rasgou-se o estai com um vento de apenas 30 nós. Às 7 da manhã o estai da gávea revelou algumas costuras a ceder no punho da escota e mandámos carregar para ser reparado. Mas não fomos a tempo porque a vela se esfarrapou ao carregar. Continuámos apenas com a mezena baixa a estabilizar o balanço que já era forte, mantendo o vento em 30º BB e vergas encostadas a EB. Sempre a crescer, o vento e o mar atingiram valores muito acima das previsões meteorológicas tendo registado 65 nós de vento e 10 metros de ondulação. Quando o vento baixava para os 40 nós era um alívio. O navio alternava entre 1 nó avante e um nó a ré. Após o almoço caiu no DSC do VHF o pedido de auxílio imediato de um navio que se encontrava a 40 milhas, mas a barlavento, o que tornava impossível a nossa aproximação. Um dos navios que estava mais próximo respondeu e estabeleceu contacto com o Centro Coordenador de Busca e Salvamento do Egipto. Era o porta-contentores italiano Jolly Amaranto, tinha tido um incêndio na casa das máquinas e estava à deriva, sem propulsão e à mercê da terrível ondulação que nós também sentíamos. Pediam apoio para a evacuação dos seus 21 tripulantes. Prometeram que ia um navio de guerra a caminho mas depois foi cancelado porque o navio estava dentro do porto de Alexandria com a barra fechada devido ao mau tempo. Outro navio mercante que vinha a correr com o tempo deu a volta e ficou a cerca de 5 milhas para dar apoio mas já havia várias dezenas de contentores na água e era pouco seguro aproximar. A tripulação estava calma e só previam encalhar daí a mais de 30 horas pelo que o perigo não era eminente. Nós por cá estávamos cansadíssimos por não conseguirmos repousar devido aos saltos e ao balanço do navio e ao esforço para estar de pé nestas condições. Nestas alturas só se conseguem fazer as tarefas básicas e fundamentais, o resto da energia é para "sobreviver". Ler ou trabalhar num computador rapidamente dão dor de cabeça, passa-se mais tempo deitado, isto para quem pode. Comemos um prego no pão e uma tigela de sopa ao almoço. Ao jantar já deu para comer à mesa uma sopa e carne estufada com arroz. Estes cozinheiros são uns heróis! A nossa prioridade era ir aguentando o navio na zona, o mais estável possível, e deixar a tempestade passar por nós, fazer uma capa seguida. Às 22:00 já o barómetro tinha subido 4 hpa, o que significa o afastamento da depressão mas o vento ainda estava nos 50 nós e o mar desfeito. As equipas do leme, agora constituídas por cinco homens, governavam com todo o leme a um e outro bordo - incansáveis num esforço sobre-humano para manter o mar na amura, debaixo de chuva, com um vento que dói e encarando um mar angustiante. Não é nada fácil a vida deste pessoal debaixo destas condições, revezam-se de 2 em 2 horas, chefiados pelo oficial de quarto que ali permanece 4 sofridas horas, sem o peso do leme nas mãos, mas com a grande responsabilidade de conduzir o navio de acordo com as ordens do comandante, não permitindo que se atrevesse ao mar ou vento, o que se torna mais complexo durante a noite ou quando não são coincidentes na direcção. De vez em quando passava-nos uma onda por cima e o poço, fazendo jus ao outro significado da palavra, enchia-se de água parecendo uma piscina, dando serventia às portas de mar que existem exactamente para escoar a água que entra pela borda. Mas estávamos mais preocupados com os 21 tripulantes do Jolly Amaranto do que connosco pois o estado do mar e a água a 15ºC não eram nada propícios a salvamentos marítimos. Estes momentos causam grande angústia, a notícia sempre se espalha pelo navio, e os menos experientes, os que não têm a noção de quão bem pensado foi este navio e da sua extraordinária capacidade para aguentar mar, ficam ainda mais apreensivos. Dia 12 de manhã um calafrio adicional, fuga de combustível do motor, implica cortar alimentação e para-lo para eliminar o risco de incêndio, detectar a fuga e reparar. Felizmente foi detectada rapidamente a rotura dos tubos alimentação e, no espaço de meia hora, estávamos com a máquina a funcionar novamente. Esperávamos que o Mediterrâneo cumprisse a sua tradição de ter tempestades repentinas mas que duram apenas dois dias. Mas não, esta durou mais um dia. Mais tarde soubemos que estava em curso os preparativos para o reboque e a tripulação fora de perigo. Nós temos sempre a possibilidade de colocar o mar na alheta e correr com ele, mesmo correndo em árvore seca (só com os mastros quando o tempo não permite velas) o navio ganha velocidade suficiente para que o leme faça efeito e assim termos governo, o que permite que o não deixemos atravessar, ou seja dar a borda. Esta é a grande vantagem dum veleiro comparativamente a um navio de propulsão mecânica de dimensões comparáveis. O problema é que a chegada a casa ficaria para o Ano Novo. Segunda-feira de madrugada o vento rodou para WSW e nós braceámos e virámos de bordo passando a fazer cerca de 8 nós com a ajuda das gáveas baixas que também se rasgaram contra todas as expectativas pois deveriam aguentar 60 nós de vento. Mas ao fim de algumas horas o mar voltou a crescer e ficámos pelos 5 nós de velocidade. Contudo, ainda continua a ser possível chegar em tempo. A madrugada de ontem trouxe-nos uma desagradável surpresa. O navio estava todo colorido de um tom avermelhado. O vento forte que soprou da Líbia trazia muita areia em suspensão. Uma areia vermelha finíssima que coloriu cabos, velas, anteparas e tudo o que estava exposto. O salitre depositado pelas ondas que nos têm fustigado ajudou a colar o pó e agora há aqui muito trabalho de limpeza. Conforme esperávamos, o vento rondou para NNE e, no final do Quarto da Alva, virámos de bordo e braceámos para aproar ao sul da Sicília e tentar recuperar algumas horas nesta luta contra o tempo. Passámos o dia a lavar os exteriores e reparar ou substituir velas enquanto a ilha de Creta ficava para trás, ao longe, na nossa alheta de estibordo. Ganhámos norte para contornar uma depressão que se está a formar à nossa proa e vamos ajustando o rumo para apanhar os melhores ventos e mares aplicando as melhores técnicas de regata pois o desejo de chegar a casa, e no tempo previsto, é enorme. Hoje ao amanhecer estava a entrar o vento que esperávamos ao contornar a depressão e fizemos faina geral de mastros para caçar todo o pano possível para ajudar o motor. Navegamos agora a 11 nós, aproados ao canal entre a Sicília e Malta, com o objectivo de ganhar uma almofada de tempo para o atraso que vamos sofrer com mais uma tempestade que entra esta noite mas que promete ter menores dimensões que a ultima. Vamos também aproveitar algum abrigo da ondulação navegando encostados à costa sul da Sicília, que estará ligeiramente a sotavento. Parámos o motor esta manhã para mudar o óleo e provavelmente batemos um recorde, tal foi a rapidez da tarefa. A guarnição está tão apostada em contribuir para chegar a horas que se esforça ao máximo na reparação e reposição de velas, mesmo à chuva ou a ser fustigados com ondas e balanço. Não há melhor motivação para este grupo do que ver o navio a andar à velocidade necessária para cumprir o ETA! Depois contaremos como foi a segunda metade do Mediterraneo 15DEZ2010 - 330º Dia - Alexandria e epopeia do Mar Mediterrâneo! Apesar de vivermos em plena época da democratização da fotografia e do vídeo, continua a ser verdadeira a frase escrita em 1557 por D. Gonçalo da Silveira: "Assim como a morte não a pinta senão quem morre, nem pode ser pintada senão vendo quem está morrendo, assim o trago que passam os que navegam de Portugal para a Índia, não o pode contar senão quem o passa nem o pode entender senão quem o vê passar." Na verdade acabamos de passar por uma dessas experiências que não conseguimos descrever nem por palavras nem por registo de imagens. Aproveitamos agora uma relativa bonança após 4 dias de extraordinário mau tempo para dar conta dos últimos acontecimentos da nossa viagem. Após a entrada no porto interior de Alexandria, embarcaram não um nem dois mas três pilotos! Nesta fase só precisávamos deles para falarem com os rebocadores e o pessoal da manobra de cabos no cais. Mas logo pediram café e brioches, elogiaram-nos e desfizeram-se em salamaleques até ao limite da paciência. Seguiu-se a já tradicional procura pelos souvenirs... Recebemos os representantes da Embaixada no Cairo, o Cônsul Honorário, os representantes da Marinha Egípcia, agentes, etc. e demos inicio a um programa de visita muito condicionado pela segurança. O cais era óptimo! Um terminal de passageiros muito limpo e moderno que viemos a verificar ser um oásis no caos da cidade. As autoridades não nos permitiram receber jornalistas nem abrir a visitas públicas. Só podíamos circular em Alexandria, e para ir ao Cairo só através de uma agência de viagens que nos foi imposta mas com quem conseguimos negociar uma boa excursão por um bom preço, aproveitando a época baixa. Iniciámos o programa protocolar com uma cerimónia de deposição de coroa de flores no Memorial do Marinheiro Desconhecido, com uma Guarda de Honra nossa e outra egípcia. Seguimos para o Comandante Geral da Marinha e depois para o Governador que pousou com gosto para a foto "atenção que eu conheço este senhor!". Falámos de Portugal, da Sagres e desta missão. O Governador tinha boas noções sobre Portugal mas ficou admiradíssimo quando lhe dissemos que a nossa população é de apenas 10,5 milhões. Mais uma vez se verifica que, fruto da nossa história e da nossa politica externa, a dimensão percepcionada pelos estrangeiros é bem maior do que a real. Seguiu-se o almoço de retribuição de cumprimentos a bordo e ficámos livres para a tarde dessa segunda-feira e toda a terça-feira. Aproveitámos para desentorpecer as pernas numa corrida pela cidade para a conhecer. Foi bem mais longa que o normal porque nos perdemos mas foi um belo passeio e muito esclarecedor. É uma cidade que fervilha de comércio de rua, onde se vende de tudo, imensas bancas de frutas e vegetais a ladear com as das carnes, estas sem qualquer tipo de condições mínimas. O lixo acumula-se pelas ruas, e o pó do deserto que se espalha por todo o lado também não ajuda ao bom aspecto. Os carros tomam o lugar dos peões nos passeios, e as pessoas tem de se misturar nas ruas com estes, mas parecem conviver bem. Vem-se muitas carroças, algumas para passeios turísticos, mas a maioria para transporte de mercadorias. É talvez o sítio mais exótico da viagem, e comentava-se, em tom de brincadeira, que a nossa ASAE "fecharia" este país. Como era dia de aniversário do Engº Gaspar fomos jantar ao Fish Market, restaurante recomendado para um peixe assado na brasa que se podia acompanhar com vinho ou cerveja, ao contrário de muitos onde imperavam as regras muçulmanas. Mas tivemos uma grande discussão porque foram sempre protelando a chegada das bebidas e, já com a comida na mesa, informaram que não serviam bebidas alcoólicas. Nem o cartão-de-visita do cônsul, que reservou o restaurante, nem a foto com o Governador, resolveram o imbróglio e bebemos água, chá e sumos. Afinal, por ser véspera do ano novo muçulmano, o governo decretou que não se serviria álcool em nenhum local como depois nos disseram. Podiam ter dito logo! Terça-feira foi o Ras as-Sana, o dia de ano novo dos muçulmanos, do ano 1432! Aqui não é utilizado o calendário deles mas em alguns países árabes sim. A diferença para o nosso é que utilizam 12 meses lunares que têm 29 ou 30 dias - o tempo que a Lua leva a dar uma volta à terra desde que está alinhada com o sol, em Lua Nova, até passar pelas fases todas. O início da contagem é a data que diz respeito ao nosso ano 622 dC. Ano em que o profeta Maomé chegou a Medina vindo de Meca, de onde tinha sido expulso. É este acontecimento (Hégira) que marca o início do calendário muçulmano. Com o dia livre, aproveitámos para ir conhecer a nova Biblioteca de Alexandria, enorme e muito moderna, com uma configuração em anfiteatro e boas entradas de luz indirecta pela cobertura, inspirada na célebre biblioteca que ardeu há cerca de dois mil anos, sendo um ponto de atracão turístico e dando imenso jeito aos estudantes da universidade que fica do outro lado da rua. Depois metemo-nos nos mercados de rua, nas lojinhas e na aventura que é uma cidade árabe. O difícil foi encontrar um restaurante com condições mínimas de salubridade, também não há muitos dignos desse nome, sobretudo fora da marginal, problema que solucionámos metendo-nos num táxi para ir comer a um dos dois grandes centros comerciais da cidade onde parece que estamos num dos nossos, se nos abstrairmos dos trajes árabes que são frequentes. Regressados à cidade velha continuámos a nossa agradável visita discutindo os preços em escalões de 5 libras egípcias, isto é, cerca de 60 cêntimos de euro. As discussões até eram agradáveis e os vendedores muito simpáticos. Quanto mais afastados das zonas de turistas, melhor. O nosso grande problema, os verdadeiros chatos, eram os taxistas que nos faziam esperas à saída do porto e após duras discussões acertando o preço, que ficava sempre várias vezes acima do que um local pagaria, tentavam levar-nos, não ao local que pedíamos, mas a lojas ou restaurantes onde tinha comissão! Os táxis, os mais velhos e degradados que já vimos, são na sua maioria de marca Lada e alguns Peugeot de modelos que nos remetem até à nossa infância. Para além da Biblioteca, visitámos o Anfiteatro Romano, as Catacumbas, algumas igrejas e mesquitas, hotéis de época, a Fortaleza Qaitbay, esta muito bem preservada e edificada no local onde se julga ter existido o mítico Farol de Alexandria. Os souks, mercados tradicionais árabes, foram o que mais nos agradou, principalmente aqueles onde os turistas menos penetram. Neles comprámos desde frutas e aperitivos até papiros, pratas, caixas com embutidos de madrepérola, cachimbos de água, etc. Tivemos ainda, comandante e imediato, a honra de uma visita guiada ao antigo Iate Real Mahroussa, com 145 metros de comprimento, era um autêntico palácio flutuante tendo sido o primeiro navio a atravessar o Canal do Suez (1869), com as mais altas individualidades dos governos e monarquias europeias. O mesmo sucedeu na reabertura do canal, após a guerra, em 1973, com o presidente El-Sadat a bordo. O Rei Farouk, em 1952, após o fim da monarquia, navegou nele para o exilo em Itália. Foi usado em conferências históricas como a dos países não alinhados, no tempo do presidente Nasser. Foi navio-escola de 1955-1973. Em 1976, tal como a Sagres, marcou presença nas comemorações do bicentenário dos EUA. Houve quem passasse o tempo nos centros comerciais por já ter saudades deste ambiente. Na realidade, fora das ruas principais parecia muitas vezes que estávamos num pós-guerra tal era o estado das ruas e dos edifícios. Em 15 minutos de carro podemos ter um contraste como da noite para o dia, é o tempo que demorámos a chegar aos novos espaços comerciais. Por outro lado, a cidade tem um rico património histórico, fruto da sua localização estratégica. A nossa recepção foi oferecida na quarta-feira e o número de presenças foi relativamente baixo apesar de se terem enviado 450 convites. Algumas pessoas vieram exclusivamente do Cairo para a recepção, o que representa 3 horas em cada sentido devido ao trânsito infernal, só comparável ao que vimos na Índia. Para a excursão que contratámos para conhecer o Cairo, dividimos a guarnição em três grupos e, um em cada dia, saía de bordo às 06:30 para regressar às 23:00 com direito a visitar as pirâmides de Gizé, o Museu do Cairo, a Cidadela, um Souk, etc., com um guia árabe que falava muito bem o português, e que chamava o grupo por família. Num autocarro de qualidade muito acima da média, porque até isto entrou na discussão do preço por email, aproveitámos a viagem de quase quatro horas até Gizé para acabar de dormir a noite, apesar dos solavancos e toques de telemóvel do condutor. O staff do autocarro era o condutor, o representante da agência, o guia e o agente secreto - um segurança bem armado. Acompanhava-nos ainda uma viatura de polícia com três polícias uniformizados que completavam o esquema de protecção e abriam caminho entre o tráfico caótico. O turismo a par da agricultura e dos proveitos do canal é das principais fontes de receita do país, sendo que a exploração do gás natural deixa antever mais prosperidade. O atentado terrorista a um autocarro de turistas, há poucos anos, faz com que as autoridades façam escolta individual cada autocarro de turistas a fim de preservar a imagem de um país seguro, que de facto é, à parte os actos terroristas não há pequena criminalidade que importune ou que se percepcione. Gizé, com as suas pirâmides, é uma das sete maravilhas do Mundo Antigo. Eram 12 pirâmides, sendo três túmulos de faraós, 3 de rainhas e outras três de familiares ou pessoas importantes. A principal e maior (com cerca de 5000 anos), Quéops, túmulo de Khufu, foi construída ao longo de 20 anos por 25 mil homens trabalhando 10 horas por dia. A sua base é um quadrado com 230 metros de lado com uma diferença máxima de 4 cm entre cada um dos lados. A altura era de 146 m mas agora é de apenas 137 m, porque afundou com o tempo. São mais de dois milhões de blocos de granito com um peso médio de 2,5 toneladas embora algumas pedras da base tenham 15 toneladas. As pedras vieram de barco de Assuão ou de uma pedreira ali perto cujo resto foi transformado numa gigante imagem da esfinge. Aqui os vendedores de bugigangas são muito agressivos e dominam todas as técnicas de vendas que se possam imaginar. O Egipto tem 84 milhões de habitantes dos quais, 95% vivem no Vale do Nilo, que corresponde a apenas 5% do seu milhão de quilómetros quadrados. Tem havido uma grande explosão demográfica nos últimos anos, é consequência do objectivo estratégico para o país ter mais peso na escala regional, em 2003 a população tinha menos 10 milhões. A pressão demográfica é tão grande que há habitações dentro do perímetro das pirâmides e nos terrenos férteis do vale do Nilo. São edifícios em tijolo a perder de vista, de gente pobre que veio para a cidade. Vê-se pouca ou nenhuma cor nos edifícios habitacionais, diz-nos o guia que as casas por pintar não pagam impostos, por se presumirem por acabar. O pó do deserto também faz a sua parte harmonizando a tonalidade de tudo. Há até um caso caricato: a Cidade dos Mortos é um bairro construído dentro de um grande cemitério. Quase todo o país é deserto. O Sinai, o Sahara e o Ocidental são disso exemplos. Dizem que o Sahara começa em Gizé e termina em Marrocos. Por aqui 90% da população é muçulmana sunita, e há uma boa parte muito cumpridora das cinco regras principais desta religião: •1. Acreditar que Alá é Deus, no profeta e nos seus livros; •2. Fazer cinco rezas diárias; •3. Jejuar no mês do Ramadão do nascer ao pôr-do-sol, i.e., não beber, fumar ou comer; •4. Ir a Meca pelo menos uma vez na vida; •5. Ajudar os necessitados. Os restantes 10% são cristãos em parte descendentes dos Coptas (Cristãos Jacobinos do Egipto), considerados os verdadeiros egípcios autóctones. Verificámos que muitos homens tinham uma marca na testa que podia ser um calo ou uma queimadura de atrito. Viemos a saber que é sinal de cumprimento das rezas diárias devido ao tocar com a cabeça no chão, há uma certa necessidade de se empolar esse calo, quanto maior mais devoto se demonstra ser. Há quem diga que há muitos devotos que se preocupam mais com o parecer do que com o ser, centrando-se no "cultivo" do calo. Mas há outras regras tais como a de as mulheres apenas poderem mostrar o rosto e as mãos (é assim para 80% das mulheres, há um crescente número de 10% que veste de preto e só se lhe vêm os olhos, e outros 10% que traja à ocidental); a sexta-feira ser equivalente ao nosso Domingo e haver 17 grandes pecados de onde destacamos: Desobedecer aos pais; Insultar uma mulher; Proferir falsos testemunhos; Adultério; Beber bebidas alcoólicas; Comer carne de porco; Jogar a dinheiro; Suicídio; Matar; Roubar; Insultar os profetas, etc.. A origem da religião muçulmana deu-se quando o Anjo Gabriel revelou o Profeta Mahomé (570 - 632dC) quando este tinha 40 anos. O país tem 30 000 mesquitas e 4 000 igrejas. O Cairo é considerado a cidade das mil mesquitas, com mais de 13 000. Visitámos a Cidadela Al Qalaa onde viveram durante 700 anos os governantes do país, e a imponente Mesquita de Mohammed Ali que fica dentro do seu recinto. O nosso almoço foi um bom bufet de comidas locais num dos muitos navios-restaurante atracados nas margens do Nilo. Seguiu-se a visita mais esperada, ao Museu Egípcio. Foi o primeiro edifício construído de raiz para a função de Museu tendo sido inaugurado em 1902. Em Novembro de 1922 o britânico Howard Carter descobriu aquela que viria a ser a maior atracção deste museu. O túmulo do rei-rapaz Tutankhamun que reinou o Egipto unificado desde os 9 anos de idade até à sua morte com 19 e foi sepultado mumificado e com os seus objectos pessoais. Um verdadeiro tesouro que incluía sarcófagos de ouro, as carruagens em que se deslocava, as suas mobílias, bengalas, jóias, etc.. Foram 10 anos de escavações e outros tantos de catalogação de mais de 5000 peças. O facto de estar intacto e de ter sido explorado com método é que o torna único, tendo revelado importantes informações sobre as técnicas de mumificação. Presume-se que ainda haja alguns túmulos deste género por descobrir. A riqueza e esplendor do recheio do museu nada condiz com as suas condições, parece parado no tempo, talvez em meados do século passado, e por isso se justifica plenamente a construção em curso de um novo. O período dourado do Egipto coincide com a época dos faraós, única autoridade que resulta da conquista do Baixo Egipto, em 3100 a. C., por Menés, rei do Alto Egipto, dá-se a assim a unificação. O faraó era considerado um deus, tinha um poder sagrado e absoluto, sendo o chefe político, militar e religioso. O Império manter-se-á até 525 aC, altura a partir da qual sofreu uma sucessão de invasões estrangeiras. Estava sob o domínio do império Persa quando, em 332 aC, Alexandre Magno o invadiu, sendo recebido como um libertador. Quando morre, em 323 aC, inicia-se a dinastia ptolemaica que governaria o país até ao ano 32 aC quando, governado pela famosa Rainha Cleópatra, não resistiu às invasões romanas. Em 642 dC, os muçulmanos ocupam o Egipto e instalam a sua capital no Cairo. Seguem-se-lhe os turcos, Napoleão, otomanos, ingleses e alemães, o que na prática corresponde a cerca de 2000 anos de ocupação estrangeira, e de muitas pilhagens de património. Terminámos a nossa visita ao Cairo com a visita a um souk onde despachámos as nossas últimas libras a troco de souvenirs. Nesta altura já discutíamos sem contemplações, testando os vendedores. Quando não vendiam aos preços baixíssimos que propúnhamos, ia-mos à banca seguinte e propúnhamos um pouco acima e assim por diante até comprar. As bugigangas repetem-se de loja para loja e, se houver tempo, podemos aproveitar este facto. O problema é quando está um turista nórdico a comprar sem discutir ou a discutir sem manha, pagando cinco e seis vezes mais que nós. A viagem de regresso serviu para descansar de um intenso dia de turismo e discussão. Os egípcios referenciam Portugal a três aspectos: O futebol através de Figo, Cristiano Ronaldo e Manuel José que fez um óptimo trabalho como treinador do Al Ali do Cairo; As laranjas que os portugueses trouxeram da China (por aqui Portugal significa laranja), melhoraram e introduziram na região; A Batalha de Diu, em 1509, em que D. Francisco de Almeida arrasou a esquadra egípcia deixando-os tão vulneráveis que foram invadidos pelos turcos. Embora já aqui abordada, importa relembrar que esta batalha naval, das mais relevantes da nossa história, cimentou a presença portuguesa na Índia assim como a rota comercial marítima em detrimento da terrestre, secando literalmente o Egipto, de tal forma que não se esqueceram de nós, pensando que somos maiores do que realmente somos. Largámos na passada sexta-feira de manhã, com o tempo a agravar-se. O Piloto era apenas um e desembarcou ainda antes de sairmos do porto interior. Sabíamos que se aproximava uma tempestade, mas nada de extraordinário. Aliás, as previsões indicavam-nos três tempestades ao longo do caminho até Lisboa. No Mar Jónico, entre a Grécia e a Itália, sim, havia previsão de ondulação de 6 a 8 metros! O canal de saída é estreito mas está bem balizado com bóias e tem um bom enfiamento de faróis que seguimos sem problemas, no entanto podemos avistar 3 navios encalhados dentro do porto. Lá fora, caçamos estai, bujarrona de dentro, estai da gávea e mezena baixa e íamos a fazer 8 nós com a ajuda do motor a 2000 rpm. Após o jantar o tempo começou a piorar e à meia-noite rasgou-se o estai com um vento de apenas 30 nós. Às 7 da manhã o estai da gávea revelou algumas costuras a ceder no punho da escota e mandámos carregar para ser reparado. Mas não fomos a tempo porque a vela se esfarrapou ao carregar. Continuámos apenas com a mezena baixa a estabilizar o balanço que já era forte, mantendo o vento em 30º BB e vergas encostadas a EB. Sempre a crescer, o vento e o mar atingiram valores muito acima das previsões meteorológicas tendo registado 65 nós de vento e 10 metros de ondulação. Quando o vento baixava para os 40 nós era um alívio. O navio alternava entre 1 nó avante e um nó a ré. Após o almoço caiu no DSC do VHF o pedido de auxílio imediato de um navio que se encontrava a 40 milhas, mas a barlavento, o que tornava impossível a nossa aproximação. Um dos navios que estava mais próximo respondeu e estabeleceu contacto com o Centro Coordenador de Busca e Salvamento do Egipto. Era o porta-contentores italiano Jolly Amaranto, tinha tido um incêndio na casa das máquinas e estava à deriva, sem propulsão e à mercê da terrível ondulação que nós também sentíamos. Pediam apoio para a evacuação dos seus 21 tripulantes. Prometeram que ia um navio de guerra a caminho mas depois foi cancelado porque o navio estava dentro do porto de Alexandria com a barra fechada devido ao mau tempo. Outro navio mercante que vinha a correr com o tempo deu a volta e ficou a cerca de 5 milhas para dar apoio mas já havia várias dezenas de contentores na água e era pouco seguro aproximar. A tripulação estava calma e só previam encalhar daí a mais de 30 horas pelo que o perigo não era eminente. Nós por cá estávamos cansadíssimos por não conseguirmos repousar devido aos saltos e ao balanço do navio e ao esforço para estar de pé nestas condições. Nestas alturas só se conseguem fazer as tarefas básicas e fundamentais, o resto da energia é para "sobreviver". Ler ou trabalhar num computador rapidamente dão dor de cabeça, passa-se mais tempo deitado, isto para quem pode. Comemos um prego no pão e uma tigela de sopa ao almoço. Ao jantar já deu para comer à mesa uma sopa e carne estufada com arroz. Estes cozinheiros são uns heróis! A nossa prioridade era ir aguentando o navio na zona, o mais estável possível, e deixar a tempestade passar por nós, fazer uma capa seguida. Às 22:00 já o barómetro tinha subido 4 hpa, o que significa o afastamento da depressão mas o vento ainda estava nos 50 nós e o mar desfeito. As equipas do leme, agora constituídas por cinco homens, governavam com todo o leme a um e outro bordo - incansáveis num esforço sobre-humano para manter o mar na amura, debaixo de chuva, com um vento que dói e encarando um mar angustiante. Não é nada fácil a vida deste pessoal debaixo destas condições, revezam-se de 2 em 2 horas, chefiados pelo oficial de quarto que ali permanece 4 sofridas horas, sem o peso do leme nas mãos, mas com a grande responsabilidade de conduzir o navio de acordo com as ordens do comandante, não permitindo que se atrevesse ao mar ou vento, o que se torna mais complexo durante a noite ou quando não são coincidentes na direcção. De vez em quando passava-nos uma onda por cima e o poço, fazendo jus ao outro significado da palavra, enchia-se de água parecendo uma piscina, dando serventia às portas de mar que existem exactamente para escoar a água que entra pela borda. Mas estávamos mais preocupados com os 21 tripulantes do Jolly Amaranto do que connosco pois o estado do mar e a água a 15ºC não eram nada propícios a salvamentos marítimos. Estes momentos causam grande angústia, a notícia sempre se espalha pelo navio, e os menos experientes, os que não têm a noção de quão bem pensado foi este navio e da sua extraordinária capacidade para aguentar mar, ficam ainda mais apreensivos. Dia 12 de manhã um calafrio adicional, fuga de combustível do motor, implica cortar alimentação e para-lo para eliminar o risco de incêndio, detectar a fuga e reparar. Felizmente foi detectada rapidamente a rotura dos tubos alimentação e, no espaço de meia hora, estávamos com a máquina a funcionar novamente. Esperávamos que o Mediterrâneo cumprisse a sua tradição de ter tempestades repentinas mas que duram apenas dois dias. Mas não, esta durou mais um dia. Mais tarde soubemos que estava em curso os preparativos para o reboque e a tripulação fora de perigo. Nós temos sempre a possibilidade de colocar o mar na alheta e correr com ele, mesmo correndo em árvore seca (só com os mastros quando o tempo não permite velas) o navio ganha velocidade suficiente para que o leme faça efeito e assim termos governo, o que permite que o não deixemos atravessar, ou seja dar a borda. Esta é a grande vantagem dum veleiro comparativamente a um navio de propulsão mecânica de dimensões comparáveis. O problema é que a chegada a casa ficaria para o Ano Novo. Segunda-feira de madrugada o vento rodou para WSW e nós braceámos e virámos de bordo passando a fazer cerca de 8 nós com a ajuda das gáveas baixas que também se rasgaram contra todas as expectativas pois deveriam aguentar 60 nós de vento. Mas ao fim de algumas horas o mar voltou a crescer e ficámos pelos 5 nós de velocidade. Contudo, ainda continua a ser possível chegar em tempo. A madrugada de ontem trouxe-nos uma desagradável surpresa. O navio estava todo colorido de um tom avermelhado. O vento forte que soprou da Líbia trazia muita areia em suspensão. Uma areia vermelha finíssima que coloriu cabos, velas, anteparas e tudo o que estava exposto. O salitre depositado pelas ondas que nos têm fustigado ajudou a colar o pó e agora há aqui muito trabalho de limpeza. Conforme esperávamos, o vento rondou para NNE e, no final do Quarto da Alva, virámos de bordo e braceámos para aproar ao sul da Sicília e tentar recuperar algumas horas nesta luta contra o tempo. Passámos o dia a lavar os exteriores e reparar ou substituir velas enquanto a ilha de Creta ficava para trás, ao longe, na nossa alheta de estibordo. Ganhámos norte para contornar uma depressão que se está a formar à nossa proa e vamos ajustando o rumo para apanhar os melhores ventos e mares aplicando as melhores técnicas de regata pois o desejo de chegar a casa, e no tempo previsto, é enorme. Hoje ao amanhecer estava a entrar o vento que esperávamos ao contornar a depressão e fizemos faina geral de mastros para caçar todo o pano possível para ajudar o motor. Navegamos agora a 11 nós, aproados ao canal entre a Sicília e Malta, com o objectivo de ganhar uma almofada de tempo para o atraso que vamos sofrer com mais uma tempestade que entra esta noite mas que promete ter menores dimensões que a ultima. Vamos também aproveitar algum abrigo da ondulação navegando encostados à costa sul da Sicília, que estará ligeiramente a sotavento. Parámos o motor esta manhã para mudar o óleo e provavelmente batemos um recorde, tal foi a rapidez da tarefa. A guarnição está tão apostada em contribuir para chegar a horas que se esforça ao máximo na reparação e reposição de velas, mesmo à chuva ou a ser fustigados com ondas e balanço. Não há melhor motivação para este grupo do que ver o navio a andar à velocidade necessária para cumprir o ETA! Depois contaremos como foi a segunda metade do Mediterrâneo!